quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Denise

O nome do conto lembra-me alguém, mas a história lembra muito mais!
Achei lindo, de Elisa, não Dindi Elisa, e sim Elisa Lucinda:

Eu achava que ela parecia muito comigo. Tinha os olhos verdes, a pele morena. A mãe era Rosinha, italiana casada com Seu Pedro, um negro boa gente que gostava muito de um copo.

Eu e Denise parecíamos as goiabas da goiabeira da gente. Goiabas da infância. Qu mangas. Alguma irmandade de frutas vizinhas nos unia à mesma árvore e ao mesmo quintal. Éramos irmãs no meio da tarde. Passando a faca uma pra outra, descascando laranja, no meio da mesma tarde, brincávamos de comer os pedaços finais das palavras, mineiramente e feito caipira; inventávamos músicas: “tom Deni, pó cascá primeiro”.

Carrinho de rolimã e as pernas longas e magras de Denise. E a risada dela. E as tirinhas de nossa vermelha gravata do grupo escolar sempre aumentando com a série. Denise...

Era julho e férias, eu peguei hepatite. Meus pais e irmãos foram para Linhares e fiquei com minha avó. Era chato ficar doente. E aquela era uma doença tão amarela, tão chá de picão toda hora, tanto doce de hora em hora, que tinha até perdido o gosto toda bala. Eu já não agüentava mais doces, nem ver. Minha avó era severa e triste. Eu era insevera e alegre e a única coisa que me atraía naquele repouso obrigatório era a novidade. Ficava no quarto o dia todo só fingindo que tava triste: meus irmãos longe se divertindo e eu não! Era como se sempre chovesse lá fora. Como se aquelas férias fossem um quintal onde não pudesse brincar. Mas no fundo a novidade de tudo aquilo me fascina.’a e, mais no fundo ainda, me divertia. Não conseguia ficar triste de verdade. Por isso fingia. Chorava e tudo. Fingia pra mim primeiro. Depois pros outros. Mandei um bilhete pra Denise vir me ver. Hepatite pega, diziam. Só uma coisa era imune àquela doença, essa coisa eraa solidão. Claro! A solidão já era amarela e pálida mesmo; não corria perigo.

Denise chegou. Entrou sonsa, passou pelos óculos da minha avó na máquina de costura e veio alta, saracura de pernas longas sob o vestidinho largo com elefantinhos verdes na estamparia. Me olhou como se trouxesse no ventre o proibido, a subversão. Rimos sapecas uma para a outra. Quatro olhos verdes. Denise sacou de dentro do vestido uma lata de goiabada e com um abridor junto. Sorriu. Pensou que era proibido e me trouxera uma dose enorme do que pensara ser um pecado bom e do qual eu estava enjoada de ser o meu remédio. Por amor comi.

Era amor aquela lata. Ela então levantou o vestido, eu levantei o meu e nos abraçamos feito coisa combinada, encostando nossos corpos um no outro. Nós éramos uma só naquele momento, naquela mesma tarde. Os corpinhos colados como um espelho cheio de sonhos: viraríamos mulheres e casaríamos e teríamos marido e filhos cada uma. Toda a tarde ficou feliz naquele momento. Todo o mês de julho, todo o barulho da máquina de coser e seu motor vindo do quarto de costura ficou feliz. Ficamos um minuto de eternidade ali. Sol, canavial, abacateiro, galinha, peru, cachorro, todo o universo ali.

Até a hora em que minha avó adentrou o quarto e rasgou a cena do que ela pensou ter visto. Mandou Denise embora e me fulminou com olhos de queimar o outro e o sentenciar o inferno. Chorei com a lata de goiabada ao lado do travesseiro.

Minha mãe voltara dias depois e chamou Rosinha pra conversar as conversas confusas e desesclarecidas dos adultos. Nos vigiaram sempre depois dali. E nós nem nos lembrávamos mais o porquê. Depois nos mudamos de bairro, de cidade e de estado. Ficamos nos devendo uma conversa nalguma tarde para pormos a vida em dia. Depois, sei que Denise casou, que teve uma filha linda, um marido que ela acreditava ser lindo, e era dona de uma loja chamada Coisas da Fazenda. Isso me fez pensar que minha amiguinha duraria para sempre.

Mas hoje Denise morreu. Liguei, pra infância, telefonei para o que sobrou de tias e vizinhos. De quê? Por quê? Cadê Denise? Denise morreu de hepatite aguda, responderam.

A morte de Denise me deu uma solidão amarela no peito. Um sol que dormiu fraco e cedo; como um repouso obrigatório. Um dia obrigado a virar noite no meio da tarde.

Denise, eu não cheguei a tempo com minha lata. Denise, eu joguei meu abridor no infinito.

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